guerreiro pergunta: quem é você? (nós queremos saber!) - entrevista com lúcia porto: aquariana, natural de alto piquiri - pr. 46 anos, musicista & professora de artes, compositora & instrumentista, escritora & empreendedora. ela é, lúcia porto.
guerreiro: quem é lúcia porto?
lúcia: estou me descobrindo ainda, costumo dizer que estou em processo de transição (male to female). como você sabe, sou uma mulher trans, mas só me assumi aos 43 anos, portanto, não tenho uma expressão feminina convincente - o que na linguagem das trans, chamamos de "passabilidade", ou seja, passar despercebida, como uma mulher cis. esse processo de transição, no meu caso, pode nunca acabar. não sei que resultados obterei com a depilação à laser que faço no rosto, por causa da barba, por exemplo. preciso também da autorização do meu psiquiatra para tomar hormônio feminino e esses resultados interferem diretamente em quem a lúcia se tornará. se eu conseguir uma expressão bacana, posso colocar seios por exemplo, se não, pretendo ficar como estou. internamente as coisas são mais complexas, faço terapia e tomo medicação psicotrópica, por isso, tomar hormônio feminino pode ser prejudicial. no entanto, estou mais corajosa e mantive minhas atividades de escritora, pesquisadora e musicista, que eu já exercia antes da transição.
guerreiro: nascida em alto piquiri, quando e o que a trouxe para curitiba?
lúcia: alto piquiri é uma pequena cidade no noroeste do paraná. meu pai biológico (com quem tive pouco contato) era lavrador e músico (tocava viola caipira) e minha mãe cozinheira. nasci em janeiro de 1974, mas a falta de trabalho na colheita do café e o sonho de ser músico profissional, fez com que meu pai biológico e por consequência minha mãe, buscassem uma vida melhor na capital. chegamos no início de 1975 (tinha pouco mais de um ano de idade) e fomos morar na vila leão - zona sul, uma comunidade carente formada por muitos trabalhadores da matte leão, por isso, vila leão. chegamos antes da neve de julho e minha mãe conta que eu e ela quase congelamos, pois a neve atravessou as frestas da casa de madeira. meu irmão nasceu pouco depois, em agosto de 1975. poucos anos mais tarde, meus pais se separaram e daí seguimos para a vila trindade - na zona leste. foi nessa época que meu pai biológico gravou seu primeiro disco - mas isso, só fui saber na idade adulta.
guerreiro: em que momento a música entra na sua história?
lúcia: foi em 1982, eu era uma menina de oito anos e morava na vila trindade - zona leste de curitiba (uma das vilas mais pobres e violentas da cidade, até hoje). um primo, quatro anos mais velho que eu, tinha um amigo que morava na rua detrás da nossa e ele tinha uma bela coleção de vinil. ele gravou para o meu primo uma mixtape em fita cassete com alguns clássicos do hard rock, entre eles: "shot down in flames" do ac/dc (álbum "highway to hell" - 1979), "telegram" do nazareth (álbum "close enough for rock 'n' roll" - 1976) e "get down and get with it" do slade (álbum "alive" - 1972). há poucos anos descobri que o slade se baseou na versão que little richard (1932 - 2020) gravou em 1967. quando ouvi o riff de entrada que angus young fez em "shot down in flames" minha vida nunca mais foi a mesma."
guerreiro: você fez o ensino médio no colégio estadual do paraná, que é uma referência no ensino técnico e na educação paranaense, como foi essa experiência?
lúcia: fui aluna lá, no ensino médio (antigo segundo grau), de 1989 à 1992 e voltar como professora (2006 - 2007) foi uma realização. talvez tenha sido a melhor época da minha fase no magistério (2005 - 2011). eles tem uma metodologia do ensino de artes diferente das outras escolas da rede pública, por causa da "escolinha de artes". infelizmente eu já estava depressiva nessa época, por conta da disforia de gênero e outros problemas emocionais, mas não sabia. por questões políticas, fui afastada do colégio, mas nessa época voltei a compor e a gravar com algumas alunas e isso me fez querer estudar mais.
guerreiro: você se formou em música pela universidade federal do paraná e pós graduou-se pela faculdade das artes do paraná, qual a contribuição para sua musicalidade, a sua formação acadêmica lhe proporcionou?
lúcia: a graduação na ufpr (1998 - 2002) me aproximou do universo erudito e da música contemporânea do séc. XX. tive excelentes professores e boas oportunidades de mostrar o material que fui desenvolvendo, fosse com as bandas ou nos projetos da própria universidade. o acesso a esse conhecimento me ajudou por exemplo, a compor minha "sonata para violão em mi menor", alguns anos depois. a pós em mpb na fap (2002 - 2004) foi a primeira pós em mpb do brasil e me fez mergulhar no universo da música popular brasileira. foi lá que ouvi falar pela primeira vez no compositor e maestro waltel branco (1929 - 2018). tive a oportunidade de conhecê-lo na época, entrevistá-lo e trocar ideias com esse que foi um dos grandes músicos brasileiros. a minha peça para violão "waltelnianas" é uma pequena homenagem à ele. sem a graduação e sem a pós, não teria composto nenhuma dessas obras.
guerreiro: você tocou em duas bandas curitibanas, stanley dix e chalé chaminé, como foi essa experiência?
lúcia: a stanley dix foi uma banda de surf music instrumental, onde fui baixista (1998 - 2000). ela me abriu as portas dos estúdios de gravação e de shows, entre eles, tocamos com a lendária banda okotô e a vocalista e guitarrista cherry taketani (falecida em 2017) nos convidou para tocar na emblemática casa de shows "hangar 110" em são paulo. a chalé chaminé (2000 - 2001) era um grupo de música brasileira e me deu a oportunidade de mostrar minhas composições e tocar em teatros e ginásios.
guerreiro: contos literários, artigos musicais, redação de releases, foram algumas atividades que você exerceu, isso claro, acrescentou muito para o seu crescimento como artista, como foi essa experiência? você continua exercer essas funções?
lúcia: sim, menos a redação de releases. antes de decidir pela música profissionalmente (1997) quis ser escritora, mas era impossível viver de direitos autorais. na música é mais ou menos parecido, mas a literatura me iludiu menos. não me achava (não me acho ainda) uma boa instrumentista e achei que se juntasse meus "talentos" literários com a música poderia ter alguma chance. financeiramente não fui bem sucedida, mas tive a oportunidade de conhecer e redigir releases para bandas e músicos, como, patrulha do espaço, faichecleres, airton mann, entre outros, não menos importantes, além de entrevistar o seu waltel (waltel branco). fui colunista musical do jornal manifesto arte da audrey farah, por dois anos (2003 - 2004). ela publicou no jornal a entrevista com o seu waltel e pouco depois a entrevista foi também publicada pela revista poeira Zine de são paulo. hoje escrevo pouco sobre música, tenho me dedicado mais aos meus contos e crônicas, que publico em blog.
guerreiro: você publicou um livro, "todas as entrevistas da LadoA Discos" fale nos um pouco sobre seu livro e sua experiência como escritora?
lúcia: foi meu refúgio, principalmente depois que meu pai de criação faleceu em 2013. me dediquei ao projeto de entrevistar outros músicos e a entender como eles trabalhavam. depois fui atrás de todo o processo de publicação de um livro. foi lançado em setembro de 2016 de maneira independente.
guerreiro: durante um período de seis anos, você atuou como professora de artes, como foi pra você essa passagem? você não pensa em retomar essa atividade?
lúcia: não, por enquanto, não. foi uma experiência dolorosa, eu deveria ter desistido no primeiro dia. o trabalho no magistério agravou meu quadro depressivo, mas não me dei conta, porém, aprendi muito, desde relacionamentos a como "não dar uma aula" (há, há).
guerreiro: em 2017 você assumiu-se transgênero, numa sociedade conservadora como é nossa curitiba, que em pleno século XXI, ainda carrega seus tabus e seus traços de preconceitos, você demonstrou sua coragem e seu espírito livre, parabéns! isso lhe trouxe algum tipo de dificuldade?
lúcia: muito obrigada! quando acabei o projeto do livro "todas as entrevistas da LadoA Discos", me vi sem rumo, logo depois fui internada numa clínica psiquiatra em 2017, foi quando tomei a decisão de me assumir, e sim, enfrentei e ainda enfrento muitas dificuldades, as pessoas da minha geração (46 anos) pra cima, são mais difíceis de lidar (você é uma das poucas exceções), os mais jovens, que tenho contato, são mais acessíveis. no cotidiano é bem complicado, não há banheiros públicos, empregos formais para as trans, enfim... sair de maquiagem depois das 19:00hs na rua não é recomendável - uma vez quase fui espancada e apedrejada.
guerreiro: e seu lado empreendedora? nos conte, por gentileza, sobre a LadoA Discos.
lúcia: a LadoA Discos sempre esteve a beira do fracasso, iniciei em 2012 e curiosamente ela nunca fechou. o mundo do vinil é muito concorrido e complexo e em 2015 optei por vender todo o estoque (mais de mil discos) e direcionar a marca para a produção de conteúdo on line, como as entrevistas por exemplo. peguei o dinheiro da venda do estoque e publiquei o livro, foi uma maneira de sedimentar a marca, mas aí fui internada... os negócios estão indo de mal a pior (há, há) devido também a pandemia, mas os clientes podem entrar em contato via redes sociais.
guerreiro: além de excelente instrumentista, intérprete e mestra em música, você é uma compositora maravilhosa, a quanto tempo você desenvolve esta habilidade? você tem alguma referência no universo da composição?
lúcia: obrigada. componho desde os vinte anos, mas não tenho muitas músicas acabadas. vou trabalhando aos poucos e juntando os pedaços, a minha "sonata para violão em mi menor", por exemplo, levou seis ou sete anos para ser concluída. "nas referências posso citar jimmy page e o seu waltel (waltel branco).
guerreiro: futuro. quais seus planos e projetos para o futuro?
lúcia: não morrer por ser uma mulher trans, aprender a fazer pão com a minha mãe, casar vestida de noiva (há, há) e continuar tocando.
guerreiro: querida lúcia, muito obrigado por tudo que você representa, para o desenvolvimento e para o engrandecimento da arte e da cultura paranaense, e claro, por sua generosa colaboração com o projeto, "curitiba suburbana" e a coluna "guerreiro pergunta" faça por gentileza suas considerações finais e fique a vontade para deixar seu contato!
lúcia: agradeço a você guerreiro e a ana campos, por lembrar-se do meu trabalho e por dar espaço para uma mulher trans. foi bom expor alguns aspectos do meu trabalho, da minha vida e da minha condição, fico feliz. os leitores me acham facilmente nas redes: lúcia porto/facebook e lucia_porto_1/Instagram ou em luciaporto@yahoo.com
just a little patience!
(publicada em 30/07/20 por curitiba suburbana online.)
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