Pular para o conteúdo principal

dia dos pais e as saudades do velho

 

sou filha de outro casamento, fui mais ou menos adotada perto dos dez anos e pra isso tive que fugir da casa do meu pai biológico duas vezes. minha mãe se separou, não deu conta de criar os filhos e nos mandou (eu e meu irmão) de volta. quando fugi pela segunda vez ela estava pra casar novamente e fiquei uns tempos com a minha avó. na verdade não queria morar com minha mãe, quis continuar onde estava (quem não quer morar com a avó?) mas não tive escolha.

até hoje não sei se meu pai de criação sabia da nossa existência, se sabia, não sei se estava nos planos adotar duas crianças perto dos dez anos, faixa etária pouco procurada para adoções até hoje. de qualquer forma meu pai biológico assinou um documento de "guarda e responsabilidade" passando a tutela dos menores ao novo casal e desapareceu.

minha disforia de gênero já existia naquela época (início dos anos 80) e meu pai de criação foi o primeiro adulto a descobrir. ele me viu vestida com as roupas da minha mãe e encontrou meu diário, onde havia algumas declarações de amor a um menino conhecido. até certo ponto, ele não se envolveu e minha mãe teve a pior reação possível.

já era uma adulta problemática quando me dei conta que precisava organizar a questão – “quem era meu pai?”. de um lado havia um pai na primeira infância e de outro um pai que me viu crescer na adolescência e me tornar aquela adulta cheia de problemas. detalhe: não me dava com nenhum dos dois e até aquele momento, internamente considerava que não tinha pai, por isso, comecei a chamar meu pai na infância de pai biológico e o que me viu crescer de pai de criação. 

acho que tanto meu pai de criação quanto eu tentamos nos aproximar, cada um a sua maneira, mas não fomos bem sucedidos. ficaram mágoas de ambos os lados e fomos convivendo do jeito que deu, sem muita conversa. mesmo em datas especiais, como dia dos pais ou aniversários, havia problemas. certa vez, dei a ele uma camisa polo, azul e branca e ele me devolveu, disse que era um azul muito claro e que o pessoal do serviço tiraria sarro da cara dele sugerindo que ele fosse gay. não era nem rosa, um simples azul claro, mas ele não gostou. os colegas de trabalho dele provavelmente era bem machistas, por que em outra ocasião, reparei que ele ficava constrangido em dizer que eu era formada em educação artística (música) e ele não era assim. provavelmente alguém sugeriu que eu fosse gay quando ele comentou que eu era formada nessa área.

nunca me assumi para meu pai de criação, apesar dele ter visto aquela cena na infância, fosse gay, ou mulher trans - o que ficou mais adequado pra mim, até por que no tempo que ele era vivo só havia os termos gay e sapatão. acho que se me assumisse naquela época, nos afastaríamos ainda mais.

apesar de tudo, às vezes sinto falta do velho, só o fato dele estar em casa já dava uma sensação de segurança. volta e meia ele fazia umas piadas sem graça e todo mundo ria, ele tinha lá um senso de humor bem peculiar. alguns anos depois do seu falecimento, concluí que se tive um pai foi meu pai de criação. o velho não era fácil de lidar, acho que no fundo ele não gostava desse negócio de "dia dos pais" e era sempre uma ocasião constrangedora. o último presente que dei a ele, não lembro se era "dia dos pais", foi o livro "um certo capitão rodrigo" - érico veríssimo, achei que por ser um personagem mais forte ele gostaria. me devolveu, disse que não gostava de ler. guardei na estante, fiquei com dois exemplares, está comigo até hoje. daí desisti do velho.

esses dias perguntei pra minha mãe, se quando meu pai de criação mandou fazer meu armário embutido, ele pensou nas minhas leituras, notei uma separação estrutural na parte onde guardei os livros. ela disse que sim. esse ano faz oito anos que ele faleceu e a supervisão da construção dos armários embutidos da casa foi seu último trabalho.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Os 500 nomes mais marcantes da música curitibana

joão romano nunes aka cabelo (violonista e compositor)  A abonico smith (jornalista). ademir antunes aka plá (violonista, cantor e compositor). ademir tortato (cantor, compositor). ades nascimento (cantor, compositor). adri dallo (cantora e compositora). adri grott (cantora, compositora). adri neves (jornalista, locutora). adriano sátiro bittencourt (violonista e compositor). adriane perin (jornalista). ágatha pradnik (acordeonista). aglaê frigeri (percussionista). airto moreira (baterista, percussionista). airton mann (guitarrista, compositor). alberto rodriguez (guitarrista, cantor e compositor). alceo bocchino (maestro, arranjador, pianista e compositor). aldo pallets (guitarrista). alec beraldi aka pisCes (guitarrista, cantor, compositor). alex gregorio (violonista, compositor). alexandra scotti (cantora, compositora). alexandre benato (baixista e vocalista).  alexandre bühler (cantor, compositor). alexandre kassin (compositor, produtor cultural). alexandre martins (cantor...

Seda (álbum) 2022

Não há uma linha condutora que ligue todas as canções, mas uma escuta atenta nos faz perceber toda a riqueza e beleza desse álbum. Todas as letras escritas em um português muito bem construído. O músico  Ades Nascimento , responsável pelo projeto, explica como foi o processo de produção do álbum.  " Em 2018 o Sesi publicou Edital de inscrições para o Núcleo de Música, com as participações  do maestro Isaac Chueke , e dos produtores e compositores Vadeco Schettini e Alexandre Kassin . O Edital ofereceu 12 (doze) vagas para duas semanas de "vivência" na Casa Heitor Stockler e Estúdio Astrolábio. Foi através desse Edital que conheci Luque Diaz . Músico e produtor de uma nova geração (comparada à minha) com excelente conhecimento de produção musical. Multi instrumentista. Conhecedor de ritmos da cultura brasileira, africana e de outras nações, imediatamente rolou uma sintonia entre minhas composições e suas audições. Ao final dessa vivência submeti o projeto sedA - Ades ...

Lado A Discos entrevista Nélio Waldy (Nelinho)

1 - Fale um pouco sobre a sua carreira musical pra quem não conhece seu trabalho. Comecei no final dos anos 70, no início dos 80 tínhamos uma dupla folk chamada "Zepelin e Nélio" , eu e o Marquinhos , que é irmão do Reinaldo Godinho (importante compositor e cantor paranaense). Uma música que gravamos, chamada "cowboy americano" , tocava direto no programa que o Maki Maru tinha na Rádio Iguaçu (a rádio era uma das líderes de audiência em Curitiba , ficou no ar por trinta e um anos e desde 1968 era parte do grupo do empresário Paulo Pimentel . Foi fechada em 27 de maio de 1977 pela Ditadura Militar por ordens do então Presidente da República Ernesto Geisel, sem qualquer justificativa).  Em 82 formei o "Grupo Dharma" , que tinha uma pegada mais prog (progressiva). Como guitarrista acompanhei, alguns artistas locais e também fui baixista de baile. Em seguida formamos o "Sinal Verde" e a "Primata Embriagae" , que mais tarde vi...